A LINGUAGEM DO IDOSO INSTITUCIONALIZADO: A CONSOLIDAÇÃO DE SENTIDO NO SILÊNCIO MANIFESTO
Resumo
INTRODUÇÃO: Neste trabalho, apresentamos resultados de uma pesquisa que teve como objetivos: a) observar o processo de silenciamento em idosos institucionalizados e b) analisar a linguagem desses idosos no processo de consciência individual. Dessa forma, averiguou-se o silêncio como parte integrativa de sistema alternativo de significação estruturante de sentidos. Para compreensão se a linguagem do idoso é afetada pela institucionalização, se ocorre a ressignificação da linguagem verbal, pela linguagem não-verbal, e se o silêncio representa sistema de significação para adultos longevos foram feitas análises em narrativas de cinco idosos institucionalizados cunhadas em conceitos da Linguística, da Análise de Discurso, da Música e da Psicanálise coadunados com preceitos enunciativo-discursivos, que consideram as circunstâncias histórico-culturais essenciais para compreensão de sentido de enunciados (1). Ao final foi identificada a consolidação de sentido estruturante para ressignificação do idoso institucionalizado no silêncio manifesto em narrativas dos idosos. Quando um idoso encontra-se em situação de vulnerabilidade, sem vínculo familiar ou sem condições de prover a própria subsistência de modo a satisfazer as suas necessidades de moradia, alimentação, saúde e convivência social, nos protocolos de cuidados de alta complexidade, encontra-se a institucionalização, o atendimento ao idoso em regime de internato. Ainda que configure um recurso assistencialista, por promover ou consolidar mudanças no contexto histórico-social acaba por impingir a realidade e a linguagem do idoso. Como resultado à exposição de consecutivos processos de silenciamento, a linguagem verbal do idoso é afetada, mas o silêncio, enquanto linguagem não-verbal e parte integrativa de sistema de significação, possibilita a emergência de sentidos, possibilitando a linguagem significar (2).METODOLOGIA: De caráter qualitativo e transversal, essa pesquisa teve o corpus instituído a partir de registros apreendidos em situações enunciativo-discursivas, captados em áudio e vídeo após consentimento. Os sujeitos foram separados em dois grupos: (i) cinco idosos institucionalizados e (ii) grupo controle composto por cinco idosos não institucionalizados. Para transcrição dos dados foi utilizado o programa Elan 5.4. Para teorização das análises de dados, por considerar o dinamismo dialógico entre o pesquisador e o sujeito, por considerar as circunstâncias histórico-culturais do sujeito e a condição de produção, essenciais para compreensão de sentido de enunciados (1), a pesquisa foi ancorada nos preceitos do “dado-achado” (1). Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia ( UESB): parecer de nº
3.050.076. Foram utilizados como parâmetro os protocolos de atendimento realizados pelo Espaço
de Convivência entre Afásicos e não-afásicos (ECOA/UESB), implementado pela professora Nirvana Ferraz Santos Sampaio, em que a convivência de afásicos e pesquisadores é circunstanciada e mediada pela linguagem verbal e não verbal (3), situações enunciativo-discursivas são criadas em oficinas de atividades. RESULTADOS E DISCUSSÃO: Para além da função de intermear as palavras, como elo complementador, o silêncio é parte integrativa da linguagem. Embora não possua um signo para representá-lo, o silêncio tem valor, e, por possibilitar sentidos, compreende- se que o silêncio não é um espaço vão, mas parte de um sistema de significação atuante, ora estruturando algo a dizer, ora figurando algo ainda não dito. O silêncio consolida sentidos localizados no âmbito histórico do sujeito e tem valor agregado a partir da percepção e da relação que o sujeito tem com sua realidade e o mundo. O idoso acumula perdas de instâncias diversas que impactam em sua realidade, em sua consciência individual e na sua percepção de mundo. Como instância fisiológica é possível considerar, por exemplo, perdas decorrentes do processo de envelhecimento não patológico, como a redução da acuidade visual e auditiva, ou a perda do tônus muscular. Há as perdas sociais, mudança de status social ou econômico em decorrência da falta de atividade laborativa, perdas emocionais, dos filhos que constituem as próprias famílias, rede social escassa ou luto. Todas essas mudanças na vida do indivíduo impactam em sua linguagem. É possível perceber essa mudança de forma mais contundente na institucionalização do idoso. Isso porque toda e qualquer instituição, por norma, trabalha em prol do coletivo, anulando singularidades, revelando perdas instituídas, promovendo distanciamento da identidade individual. Nesse processo, o indivíduo, silenciado, expressa no silêncio toda uma carga de sentido, que, uma vez apreendido e interpretado, permite ao indivíduo longevo elaborar e ressignificar o que não pode ser dito. Para reconhecimento do sentido instituído no silêncio, é necessário reconhecer como definidores os atravessamentos que ultraspassam o sujeito. Como exemplo, a seguir, observem situações enunciativo-discursivas de um dos sujeitos institucionalizados, em que o silêncio identificado e impregnado de sentido é traduzido a partir do seu contexto histórico- afetivo. Caso Tata: Antes de ser admitida na Instituição, no final da década de 90, Tata tinha como atividade laborativa ser cuidadora. Viajava, visitava pessoas. Atualmente, timidamente, preserva sua autonomia de ir e vir, e sua funcionalidade. Sem parentes próximos, fez do artesanato a ressignificação de sua atividade laboral, meio de ganhar e guardar dinheiro. Segundo a Assistente Social, o artesanato tem grande significado para a idosa, contudo “o cuidar da filha que ela arranjou” na instituição tem maior importância para ela. Trata-se de Milena, idosa que já morava na Instituição quando Tata entrou e com tamanha a afinidade a chama de mãe. O sujeito é sempre incompleto, imaturo, e, ao mesmo tempo múltiplo, social, histórico, psicológico, psicanalítico, biológico e linguístico (1). É no cuidar que Tata se identifica e se realiza, na busca de completude, o eu encontra no outro sua significação. Milena, adoecida, foi retirada do quarto que compartilhava com Tata, levada para a enfermaria. Ela corria risco de morrer. A cama ao lado estava vazia e provocava em Tata um grande vão com a possibilidade da morte de Milena, seu objeto de cuidado. Sentimento de dor, de solidão, que, ao rememorar tantas perdas, e, ao confrontar-se com a finitude, encontrava no silêncio a materialização da resistência à dor. Convidada a participar de uma oficina, Tata se recusou, optando por conversar. Com grande apatia e desânimo, apresentava falta de apetite e de interação com os demais. Em conversa com a pesquisadora, o silêncio emergia em seus enunciados, fundamentando a elaboração da finitude, da dor, da ausência e da morte (3).
Tata afirma: Lá no quarto está uma farra... está sem o colchão,...sem o colchão... Tá sem o colchão. Após pausa continua: E faz uma falta, muito ( ) E faz uma falta de Milena, Mas Deus ajuda que ela melhora, né? Pensativa, segundos depois conclui: E Deus ajuda. A pesquisadora pergunta: Você acha que ela está sofrendo? Ao que ela responde: Mais ruim, ela esteve mais pior e pra ficar ali no quarto sofrendo, dá não. A pesquisadora provoca: Não entendi... Tata responde que ela já teve mais ruinzinha ali. Ela já teve mais sofrimento. Domingo. Domingo, Milena arruinou tanto que nós ía ( ) dela morrer que tanto que ela arruinou. Era a semana que antecedia a Festa de São João na Instituição. Tata permanecia quieta e entristecida. Em sua narrativa deixa rastros de indignação e dor: “lá no quarto está a maior farra”. São significados para “farra”: balbúrdia e falta de controle. A explicação para tal sentido encontra-se a seguir: tiraram o colchão da companheira, causando-lhe grande carência. Aqui o silêncio constitutivo a permite dizer: faz falta. O silêncio interdita o que não pode ser dito; o silêncio local, a censura (2). Em outro momento, o silêncio, repleto de sentido, organiza a consciência da finitude: Milena arruinou tanto que nós ía (pensar, achar, acreditar) dela morrer de tanto que ela arruinou. O silêncio, quando manifestado, permite consolidar o sentido que Tata não consegue elaborar. O Silêncio a permite expressar o que ela não pode dizer. Permite que ela manifeste seus medos, suas dores. Possibilita intervenções para ajudá-la elaborar o evento que enfrenta, juntamente com seus significados identidários. CONCLUSÕES: O silêncio determina o limite e as impossibilidades do dizer (4), viabilizando a consolidação de sentido. O silêncio manifesto é linguagem atuante no sistema alternativo de significação estruturante de sentidos. Portanto é importante propiciar ao idoso institucionalizado o direito à escuta com reconhecimento de sentido consolidado na manifestação do silêncio, com possibilidades de intervenções eficazes, que considerem o sujeito, sua história e sua cultura, bem como os marcadores da linguagem verbal e não verbal, possibilitando-lhe a reestruturação de significados.
Referências
COUDRY, Maria Irma Hadler. Pressupostos Teórico-Clinícos da Neurolinguística Discursiva (ND). In Caminhos da Neurolinguística Discursiva – teorização e práticas com Linguagem. Campinas, SP. Mercado de letras. 2011. (COUDRY, 1988 [1986], p. 67).
TFOUNI, Fábio Elias Verdiani. Interdito e Silêncio: Análise de Alguns Enunciados. Revista Ágora. Rio de Janeiro. V. XVI n.1 Jan/Jun/ 2013 – p.39-56.
SAMPAIO, N.F.S. Uma abordagem sociolingüística da afasia: o Centro de Convivência de Afásicos (UNICAMP) como uma comunidade de fala / Nirvana Ferraz Santos Sampaio. -- Campinas, SP: [s.n.], 2006. (Tese de Doutorado)
ORLANDI, Eni. As Formas de Silêncio: no movimento dos sentidos; 6ª ed. SP, Editora Unicamp. 2007.